Aedes significa odioso. Um mosquitinho realmente chato e, mais do que isso, muito perigoso. O gênero Aedes (ou Stegomyia, para alguns estudiosos) possui ao menos duas espécies importantes do ponto de vista médico e bem estudadas, potencialmente portadoras dos vírus de que tanto temos ouvido falar ultimamente – da dengue, da Zika (não haveria nome melhor para esta doença), da febre Chikungunya, da esquecida febre amarela e de outras febres mais raras. Trata-se dos Aedes aegypti e Aedes albopictus, muito parecidos entre si e bastante cosmopolitas, sendo relatados focos de infestação de uma e outra espécie em quase todos os continentes. A propósito, essas duas espécies de mosquitos e outras quase 150, de diferentes gêneros, formam o conjunto de organismos indiretamente responsáveis pela parcela maior de mortalidade decorrente de doenças transmitidas ao ser humano. Um grupo bem letal, digno de atenção e muita pesquisa. Mesmo alguns pernilongos comuns são vetores de doenças sérias – como a filariose, causada por um parasita que se instala nos vasos linfáticos das pernas e leva a quadros incuráveis de elefantíase, o qual é transmitido por mosquitos fáceis de serem encontrados em qualquer residência de Florianópolis. Outros mosquitos, de hábitos mais silvícolas, também assolam grandes populações humanas, caso dos Anopheles e a terrível malária que transmitem aos moradores do norte do país e algumas outras localidades. Há, inclusive, mosquitos que atacam nossos animais de estimação, sendo o mosquito-palha um representante desse grupo e transmissor da leishmaniose – que pode ser fatal e também transmitida a humanos; vale ressaltar que alguns redutos de Santa Catarina ainda apresentam casos dessa antiga doença, como tem sido relatado em Ratones e em Piçarras, por exemplo. Certo é que com esses pequenos mas poderosos inimigos, seja qual for a espécie, não se pode brincar. A situação que temos presenciado no país, provocada pelos Aedes, é alarmante – com a explosão no número de casos de dengue, chegando a um milhão e meio o número de infectados em 2015; e a associação entre os casos de Zika em gestantes e a microcefalia em recém-nascidos, sendo notificados mais de quatro mil casos suspeitos de Zika, somente em Pernambuco, entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016. Os noticiários, trazendo esses números atualizados diariamente, funcionam como um alarme para tal urgência epidemiológica, lembrando a todos de que algo vai muito mal na saúde pública do Brasil.
Mas, por que aparecem de repente doenças das quais não se ouvia falar? Já não bastam as conhecidas, muitas ainda sem vacina ou cura? Há um ano, o centro do problema era a dengue e sua escalada vertiginosa nas regiões metropolitanas. Hoje, o grande temor é a Zika e as consequências neurológicas que podem trazer aos bebês. E amanhã? Bem, pode ser que a coisa piore – e apareçam novos vírus nos assombrando, pois só os Aedes, por exemplo, podem transmitir quase vinte doenças diferentes. O aparecimento de doenças menos comuns acontece, de quando em quando, porque muitos vírus permanecem “estocados” na natureza, no interior de florestas densas, ou infectando organismos com os quais não temos contato usual. Com a exploração florestal global de nossos dias, toda essa diversidade viral (e de outros agentes etiológicos, isto é, causadores de doenças, como protozoários ou bactérias) vem à tona – ficando então perigosamente próxima de nossa espécie. Ao romper o isolamento geográfico e infectar um ser humano, tais micro-organismos nocivos ganham o mundo, literalmente. Como o fluxo de pessoas para lá e para cá é impressionante e crescente, a disseminação dessas doenças adquire o mesmo ritmo. Para termos uma dimensão disso, observemos o número de visitantes que nosso estado, ou mesmo a ilha, receberam nesse verão. Agora pensemos no Rio de Janeiro. Em Salvador, no carnaval. Ou na aglomeração de São Paulo e suas oportunidades de trabalho, que atraem constantemente pessoas de todos os cantos do país. Para agravar a situação, viajar ficou mais fácil e mais barato – e com as pessoas, viajam também as doenças. Assim configura-se um dos maiores desafios aos profissionais de vigilância sanitária e saúde pública, em todo o mundo: conter o avanço das doenças em função dos deslocamentos humanos, ou seja, impedir que infecções contraídas em outras localidades se espalhem em populações humanas locais, a partir dos viajantes que chegam. Ainda sobre os vírus (chamados aqui didaticamente de micro-organismos, apesar de não serem considerados seres vivos, por não apresentarem metabolismo próprio), um fato importante é que eles podem modificar suas características muito rapidamente, através de recombinações e mutações genéticas – um exemplo clássico é o Influenza, da gripe, que a cada ano ressurge diferente e mais forte; porém tal processo pode ocorrer com qualquer vírus, representando uma ameaça constante e um obstáculo ao desenvolvimento de vacinas e antivirais.
Por incrível que pareça, considerando um país com tão pouco incentivo à ciência, o Brasil apresenta números positivos quando o assunto é vigilância sanitária. Bem no início do século XX o país, notadamente a capital Rio de Janeiro, sofria muito com as chamadas doenças tropicais - quase as mesmas de hoje, exceto as novidades da Zika, da febre Chikungunya e outras já controladas. Os transmissores, também os mesmos. Não havia, obviamente, internet, informação de fácil acesso, educação sanitário-ambiental, nada. No início, a população resistia a medidas de controle e saneamento, até com agressividade, por pura falta de conhecimento – lembram-se da Revolta da Vacina (apoiada inclusive pelo Exército), que estudamos entre um cochilo e outro no segundo grau? Mesmo assim, bravos pioneiros como Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Evandro Chagas, Joaquim Alves Ferreira Neto aqui em Santa Catarina, entre outros, tomaram para si a responsabilidade e encararam desafios impensáveis - pesquisando, combatendo, informando, indo a campo e... Vencendo as batalhas! Pois é, as equipes sempre foram muito aguerridas em combater as mazelas sanitárias e foram alcançados excelentes resultados, ao longo de muitas décadas, a despeito das condições não ideais de trabalho e de pesquisa que historicamente os governos brasileiros oferecem a seus cientistas. A febre amarela foi erradicada da cidade do Rio de Janeiro já em 1907; os casos de malária diminuíram vertiginosamente, ainda ocorrendo em ambientes de proximidade com matas nativas, mas sendo quase zerados em grandes centros urbanos fora da região norte do país (Santa Catarina sofreu muito com esta doença até algumas décadas atrás); a dengue, que já incomodava em 1900, sumiu por mais de 80 anos, reaparecendo só por volta de 1985; os próprios Aedes foram considerados extintos de nosso território, sendo reintroduzidos muitos anos depois, pegando carona com viajantes que aqui aportaram.
Devemos estar certos de que, apesar das aberrações políticas brasileiras - como nosso ministro da Saúde ter deixado o cargo para votar assuntos de interesse partidário no Congresso, em meio a essa grave crise epidemiológica, demonstrando o total amadorismo de nossos governantes em gestão de crises - ainda podemos confiar em nosso corpo científico. Laboratórios de institutos e universidades nacionais apresentam constantemente grandes progressos na área em questão: desenvolvimento de vacinas para a dengue (uma delas com eficácia de 90%, contra os quatro tipos de vírus, disponível provavelmente em 2018); utilização de mosquitos geneticamente modificados para controle populacional da espécie; sequenciamento total do material genético do vírus causador da Zika; pesquisa e desenvolvimento de repelentes naturais potentes; são alguns exemplos de contribuições da ciência nacional. Isso é pesquisa de ponta, do calibre de renomados institutos estrangeiros, como o Pasteur, de Paris. Infelizmente, o que não podemos mesmo é confiar em nosso “corpo político”, que está sempre tentando esconder e justificar suas maracutaias, em vez de focar no que é realmente importante para o povo que representa. Mas, cá entre nós, a isso já estamos acostumados, não é verdade? Agora não há tempo para trocarmos toda a corja, para depois combatermos os Aedes, contando com políticas públicas eficientes e bem estruturadas. Precisamos, urgentemente, conhecer cada vez mais o inimigo e seus hábitos - além de não termos preguiça de limpar calhas e quintais, todas as semanas do ano. Se os antigos conseguiram superar grandes desafios em saúde pública, quase sem apoio, por que nós não conseguiríamos? Há quem diga que aqueles sucessos de controle epidemiológico só foram possíveis por conta de a população brasileira ser bem menor, até a metade do século passado. Concordo, mas devo ressaltar que hoje em dia a informação está muito mais acessível a todos. O que era feito a pé, de casa em casa, ou de árvore em árvore (a partir da identificação das bromélias como criadouros de mosquitos, estas plantas tornaram-se alvos de especialistas e suas tropas de combate, inclusive com algumas espécies entrando em processo de extinção, o que foi um erro, mas era a lógica da época), hoje pode ser facilmente reproduzido através dos meios de comunicação. Realmente, em tempos de violência e com populações humanas enormes, torna-se impossível verificar todas as casas in loco. Mas dá para “entrar” mais facilmente nos lares do que antes, para ensinar, virtualmente, os moradores a utilizarem as técnicas de combate aos vetores. Em linhas gerais, penso que o desafio de agora é proporcional ao que aqueles pesquisadores enfrentaram em suas épocas. Isso é uma consequência dos grandes avanços tecnológicos de que dispomos – como drones, GPSs, todo tipo de aplicativos para celular e comunicação em tempo real. Apesar de tanta modernidade, no entanto, a adesão de toda a população aos esforços de combate ao mosquito continua imprescindível, se almejamos sucesso nessa empreitada.
Bem, voltando a falar mais um pouquinho dos Aedes, vamos procurar saber onde está seu calcanhar de Aquiles. Na verdade, o grande causador de sua proliferação é o próprio ser humano – isto porque esses mosquitos são intimamente relacionados com a nossa espécie. Acredita-se que os primeiros indivíduos desse gênero vieram para as Américas nas galés que traziam os escravos africanos. Os porões daqueles horrorosos navios ofereciam as condições ideais para a colocação dos ovos pelas fêmeas: ambientes de penumbra, úmidos e relativamente abrigados das intempéries. Havia também farto suprimento de sangue, dos homens e mulheres que eram forçadamente trazidos para cá. Assim, não foi difícil que o Aedes aegypti aportasse desse lado do Atlântico, dando início a sua “conquista” particular do Novo Mundo. Passados os séculos, os mosquitos imigrantes deram início a uma nova linhagem, muito mais doméstica, muito mais ligada a nossos hábitos – em função, dizem os entomologistas, do suprimento de sangue de fácil acesso que grupos de mamíferos sem pelos oferecem (isto é, nós em nossas casas). Nem sempre foi assim, pois populações de mosquitos estudadas na África, mais aparentadas ao grupo ancestral que migrou para cá no século XVI, apresentam comportamento menos doméstico do que seus irmãos americanos. Os mosquitos africanos depositam seus ovos preferencialmente em ocos de árvore ou no tanque formado pelas folhas de algumas plantas – chamado fitotelmata – e podem buscar obter sangue de vários animais silvestres diferentes, inclusive anfíbios e répteis. Os americanos, como bem sabemos, preferem caixas d’água, calhas, ralos, garrafas e outros recipientes vazios, pneus, etc. Ou seja, coisas feitas pelo homem, impermeáveis e que podem conter água por longos períodos – e, se o homem fez, provavelmente estará próximo para ser picado. Mesmo assim, os “nossos” Aedes também podem optar por plantas para colocarem seus ovos, o que requer atenção a esse tipo de criadouro em jardins e áreas externas.
No caso de caixas d’água, piscinas, suportes de aparelhos de ar-condicionado, ralos, pratinhos embaixo de vasos de planta, vasos sanitários pouco utilizados (normalmente o do lavabo), calhas, lajes, entre outros equipamentos das edificações, uma limpeza semanal já dá conta do recado. Por que não quinzenal? Porque o ciclo de vida do mosquito, do ovo ao estágio adulto, leva de oito a dez dias – assim, uma limpeza semanal interrompe esse ciclo, mas é preciso que seja sempre no mesmo dia da semana. Ok, mas esse esquema vale só para o verão, não é? Não. Os ovos desse mosquito são bem resistentes, permanecendo viáveis, mesmo sem uma gota de água, por até dois anos. Esse é um ponto ao qual devemos prestar atenção: ora, em um lugar que faz bastante frio no inverno, como aqui no sul do país, as populações de mosquitos nitidamente despencam nesse período. Até a oferta de sangue, essencial para a maturação dos ovos de muitas espécies, diminui por conta dos casacos e cobertores. Então, podemos concluir que, por aqui, serão os ovos “hibernando” os precursores dos mosquitos do próximo verão – diferente da continuidade ininterrupta na reprodução, como em lugares mais quentes, onde grandes populações de mosquitos são observadas o ano todo. Além disso, vírus como os da dengue apresentam transmissão vertical – ou seja, mosquitos adultos portadores dos vírus podem transmiti-los para a prole, nascendo novos mosquitos já com a doença. Logo, precisamos acabar com os ovos; e isso só vai acontecer se repetirmos a rotina de checagem e limpeza 52 vezes ao ano, sempre no mesmo dia da semana (desculpem a redundância, mas é necessário). E não é só retirar a água não... Tem de esfregar com bucha ou esponja, sabão e água sanitária quando for o caso, especialmente a linha logo acima da água em grandes reservatórios como piscinas, ou objetos pretos como os pratinhos sob os vasos de plantas - ambos locais preferenciais para colocação dos ovos pelas fêmeas. Sim, vai ser meio chato, ficar limpando as mesmas coisas o ano todo. Ainda mais quando não virmos mais tantos mosquitos, e o alarido dos meios de comunicação declinar um pouco, dando lugar aos Jogos Olímpicos. Mas é indispensável que mantenhamos esse foco – porque mais chato do que isso, é contrair dengue, ou passar uma gravidez inteira em pânico.
Já quando se trata de garrafas, pneus e plásticos em geral, a abordagem é outra. Isso é lixo e, antes de tudo, uma questão de educação e bom senso – embora também seja uma questão de administração pública. Separação adequada dos tipos de material, destinação final em contentores fechados, atenção e respeito aos dias e horários da coleta de resíduos sólidos, descarte adequado de entulho de obra, de pneus usados (o ciclo de vida desse produto prevê a logística reversa, isto é, devem retornar aos fornecedores para destinação final adequada), de sucatas de veículos e de eletrodomésticos... Agora a coisa ficou mais complicada. Sem dúvida, essa parte da estratégia de combate ao mosquito deve ser nos termos de uma guerrilha. E as batalhas são travadas em cada quintal. Como tem sido amplamente divulgado: CADA UM TEM DE FAZER A SUA PARTE. Não adianta eu limpar meu terreno e o vizinho não limpar o dele – fica então uma convocação a todos. Proprietários de imóveis fechados ou abandonados: por favor, demonstrem empenho em limpar esses locais, de maneira constante, como foi sugerido aqui – até porque agora os agentes epidemiológicos podem entrar sem autorização prévia, se ali houver foco constatado de infestação pelo mosquito, o que pode desagradar a alguns desses proprietários. Felizes mantenedores de piscinas: tratamento rigoroso da água, por gentileza. Apaixonados por plantas ornamentais: atenção a bromélias, bambus e outras espécies que possam armazenar água (como sua limpeza é um pouco difícil, recomenda-se evitá-las; mas há alternativas interessantes de controle biológico com predadores naturais das larvas de mosquito, introduzidos nesses ambientes). Todos nós: atenção, respeito e cidadania! Isso é o mínimo que podemos fazer para não sofrermos duríssimas penas, por pura negligência.
Vivemos uma nova versão das batalhas sanitárias do século passado. Um antigo inimigo em comum se levanta, levando o povo a se mobilizar - embora alguns cidadãos ofereçam resistência, outros desconfiem, outros ainda achem que estão milagrosamente imunizados e que o problema é dos outros, ignorando o fato de os mosquitos não respeitarem as fronteiras geográficas, muito menos as sociais. A política brasileira... Essa sempre foi um revés, seja em 1500, 1900 ou 2016 – com Cunhas, Calheiros e Cia. soltos por aí, quem precisa de Aedes para incomodar? Apesar de estarmos entregues à própria sorte com políticos como esses nos representando, ainda assim tento extrair uma perspectiva favorável dessa delicada situação que temos enfrentado. Assim como o Rio de Janeiro saltou de um lugar pantanoso e repleto de doenças, para uma grande cidade de vanguarda, sonho de consumo do turismo mundial, em virtude dos esforços da própria sociedade local (embora resistente no começo), numa época em que a informação viajava a passos lentos – igualmente vislumbro que nossas casas, ruas e bairros podem evoluir, por nossa conta, sendo agora as informações compartilhadas na velocidade da luz. Menos lixo, menos pragas urbanas, desenvolvimento e adoção de soluções técnicas de baixo custo, zelo ambiental apurado, controle sanitário rigoroso. Esboços de uma nova sociedade brasileira, melhor e mais saudável, que proporciona dignidade a seus componentes e tem prazer em compartilhar boas práticas. Aí quem sabe, com esse novo cenário, depois de aprendermos a combater esses odiosos mosquitos, não aprendemos também a combater esses odiosos políticos - limpando, através do voto, o grande reservatório chamado poder público?
Por Fernando Name