O pior aconteceu. Um absurdo ambiental, um pesadelo, fato ocorrido longe de nós, mas que a cada dia faz brotar informações e detalhes tão assustadores, que nos comovemos como se tivesse sido em nosso quintal. De certo modo, foi. Acredito que não só eu, mas todos nós – seres humanos conscientes, providos de empatia e amantes da natureza – compartilhamos do pesar e da tristeza trazidos com aquela terrível onda de lama. Em um momento como este, de perplexidade, tentamos entender o que aconteceu em Mariana, MG.
Trata-se de algo tão avassalador, de ferida tão feia, que falarmos a seu respeito torna-se uma obrigação – aqui, com a intenção de comunicar aos leitores sobre a grande importância das questões ambientais na vida das pessoas e a necessidade de uma atuação ética e acurada dos profissionais envolvidos nestas questões. Em um acidente ambiental ímpar como o que está ocorrendo em Minas Gerais e Espírito Santo, devemos sim apontar culpados, falhas, negligências - apesar da enorme sensação de impunidade que nós, simples brasileiros, temos diante dos detentores do poder e do dinheiro. Porque, mais do que acidente, estamos diante de um conjunto de crimes ambientais. Logo, os criminosos devem ser identificados e punidos, na medida da lei. Para a sociedade brasileira, talvez seja a última fronteira da dignidade: se o estado de coma em que se encontra o Rio Doce - que corta a região sudeste do Brasil e dá nome a um de seus algozes – for rebaixado a notícia de rodapé daqui a alguns dias, então é melhor jogar a toalha, como povo. Devemos saber, temos o direito e a obrigação de saber: quem foram os responsáveis por endossar uma atividade tão perigosa para o meio ambiente? Quem assinou os estudos de impacto ambiental daquele empreendimento? Quem aprovou tais estudos, no órgão ambiental? E os projetos de engenharia? Quem foi responsável pelo cálculo e gerenciamento dos riscos, em algo que oferece tanto risco? Onde estão vocês, colegas? A barragem rompida de rejeitos de Mariana estará em seus portfólios, no futuro?
Atividades poluidoras, de fato ou potencialmente, precisam de licença ambiental para operar - seja uma fábrica de pão de queijo, uma granja ou uma mineradora. A definição e o enquadramento dessas atividades em diferentes categorias ficam a cargo do conselho nacional e dos conselhos estaduais de meio ambiente (CONAMA e CONSEMAs). Órgãos municipais e estaduais de meio ambiente, por sua vez, são encarregados dos processos de licenciamento ambiental – análise de documentos, de estudos, cobrança de taxas, fiscalização. No caso de atividades que afetem dois ou mais estados da federação (para esse dimensionamento toma-se como referência a bacia hidrográfica que receberá os efluentes da atividade a ser licenciada), o processo de licenciamento ambiental fica a cargo do IBAMA. O nível de abrangência e a complexidade dos estudos requeridos pelos órgãos ambientais, para concessão das licenças, são proporcionais ao porte das atividades. Podem variar desde um relatório ambiental simplificado, até estudos bastante detalhados, envolvendo profissionais de diversas áreas. Agora, entre a manipulação adequada dos estudos realizados – pautada em critérios estritamente técnicos – e aquela mais conveniente para o empreendedor, está uma velha conhecida nossa: a corrupção, permeando tudo, desde os cargos executivos mais altos até os mais simples operacionais. O que muda é apenas o tamanho do cafezinho.
Para a implantação de atividades mineradoras (entre outras de grande porte), é requerida da empresa a realização de um EIA (Estudo de Impacto Ambiental), que dará origem a um RIMA (Relatório de Impacto Ambiental), sendo os resultados analisados por técnicos (biólogos, agrônomos, engenheiros ambientais, entre outros concursados) do órgão ambiental competente. O EIA deve ser produzido por equipe multidisciplinar, abordando vários aspectos que tenham relação com a atividade a ser licenciada e o seu entorno - aspectos ligados ao equilíbrio ecológico (fauna, flora, espécies ameaçadas de extinção), antropológicos, históricos, geológicos, sociais, entre vários outros. Deve-se considerar tudo o que altere a situação local, propondo-se dois cenários - um, sem a presença do empreendimento; outro, com sua instalação e operação. Após zoólogos, botânicos, ecólogos, antropólogos, assistentes sociais, geólogos, e outros profissionais da equipe elaborarem seus laudos, o relatório final deve descrever o que será impactado pelo empreendimento, grau dos impactos, alternativas para os impactos, medidas compensatórias e mitigadoras, inclusive medidas a serem tomadas após o encerramento das atividades - gerando base teórica para aceitação ou refutação da obra, pelo órgão ambiental licenciador. Eis aí a função do licenciamento ambiental: proteger o meio ambiente e garantir a integridade de ecossistemas e de seres humanos, direta ou indiretamente influenciados pela atividade a ser licenciada. No entanto, toda essa bonita teoria vira em nada, diante das propinas e lobbies que compõem a praxe da política brasileira.
Quer um exemplo? Menos de três semanas após o desastre em Mariana, foi aprovado no senado um projeto de lei (PL 654/2015) que simplifica o processo de licenciamento ambiental para grandes obras – como extração de minério, usinas hidrelétricas e estradas. Falta agora ser aprovado entre os deputados e, posteriormente, sancionado pela presidência da república. Só pode ser piada. Se com o processo completo, só em Minas já existem cerca de 500 barragens como a de Mariana (das quais duas ainda podem se romper), com um processo sumário - “ctrl C - ctrl V” - o que não seria feito dos riquíssimos biomas e riquezas naturais brasileiros? Um balcão de negócios ainda maior, comandado pelos mesmos de sempre, que conhecem bem os caminhos e meandros das falcatruas institucionais. Tudo embasado na difundida ideia de que os processos de licenciamento ambiental são inimigos do desenvolvimento nacional – ou uma perda de tempo.
Já sobre os licenciamentos, há um paradoxo que deve ser ressaltado: quem contrata a equipe multidisciplinar para os estudos (no caso de grandes obras, normalmente através de grandes empresas de consultoria ambiental, meio escusas, cartas marcadas) é o empreendedor. Por isso, EIAs e RIMAs são tendenciosos - quem vai querer pagar para provar que seu negócio é mau para o meio ambiente? Outro fato sombrio sobre os licenciamentos ambientais, é que dificilmente estão disponíveis ao grande público, apesar dos processos tornarem-se notórios através dos Diários Oficiais ou jornais de grande circulação. Mas os estudos, em si, vão para um limbo impenetrável. Por quê? Certamente, por conterem muitas falhas, por serem levianos – sendo interesses políticos e financeiros os motivadores dessa inconsistência. Interesses que não encontram barreiras éticas nos profissionais ambientais envolvidos. Estamos falando de empreendimentos da ordem de milhões, bilhões de reais – então pensem na sujeirada que deve acontecer para que tais negócios sejam viabilizados. Certamente há urubus em nosso país que já identificaram e exploram esse “nicho de mercado”... Por isso, a importância de processos sérios de licenciamento ambiental, assim como a imparcialidade dos profissionais envolvidos. Há bons e maus profissionais em qualquer área de atuação – e sinceramente acredito poder encontrar aqueles que lutam pela conservação da natureza em repartições públicas, aplicando corretamente as leis, ou em campo, fazendo honestamente seus estudos. Porém, nas questões que envolvem recursos naturais, as consequências da imperícia são imprevisíveis, como infelizmente constatamos a partir de 5 de novembro de 2015. Não há espaço para erros (mesmo sem querer, quanto mais, fruto de descaso) quando se fala, por exemplo, na água que abastece centenas de cidades, lavouras e é suporte para o equilíbrio ecológico de uma vasta região. Se não podemos contar com fiscalização e controle a partir do poder público, então devemos arregaçar as mangas e buscá-los por nós mesmos. Que jeito tem? Só não podemos fingir que nada está acontecendo, nem achar que mais nada vai acontecer.
A participação (ou consulta) popular assume papel central nos esforços – de cada comunidade, povoado ou bairro – contra a implantação de negócios ambientalmente injustos, geralmente travestidos de oportunidade e prosperidade. Nós, povo, não aceitemos o discurso de crescimento a qualquer custo. Antes, analisemos as propostas, consideremos suas consequências, debatamos – apesar da sensação de impotência diante de um país grande e corrupto como o nosso, na verdade podemos exercer grande influência sobre o mundo ao nosso redor. Calcada em educação e conhecimento, a influência é boa. Consultar as pessoas, através de audiências públicas, é obrigatório quando há geração de EIA/RIMA. No entanto, essa possibilidade de confrontação e questionamento entre população e empresa, não raramente, é deturpada e subutilizada – sendo as reuniões realizadas em horários incompatíveis com a rotina das pessoas interessadas, mal divulgadas, inconclusivas (onde as questões importantes são desqualificadas pela mesa), ou simplesmente não ocorrendo. Isso fere diretamente dois princípios do direito ambiental: o da participação comunitária e o da informação.
A lei dá o direito a pessoas e comunidades de se interarem sobre as consequências socioambientais geradas com os novos empreendimentos, mas o que é trazido a público pelos empreendedores (quando é trazido) não passa de maquiagem verde. O marketing pesado deles cuida para que as ideias de crescimento econômico e geração de oportunidades, decorrentes do novo negócio, tornem-se muito mais populares e bem aceitas do que aquele papo chato de preservação ambiental. Algo como: “ora, trabalhando em uma mineradora de grande porte, que paga os salários em dia, o que poderia ser melhor?”. Mais uma situação esquizofrênica – pois em Mariana, apesar de todo o flagelo trazido pela Samarco, a população local está bastante preocupada que a empresa encerre as atividades na região, o que traria grande desemprego. Para resolver esse impasse, a empresa poderia empregar seu efetivo local na recuperação ambiental das áreas atingidas. Fala-se em anos ou décadas para que a bacia do Rio Doce volte a um estado parecido com o anterior, antes do rompimento da barragem. Tempo que poderia ser reduzido pelo trabalho “formiguinha” daquelas populações, que além de muito eficiente (vide pirâmides do Egito, ou Muralha da China), garantiria os empregos por bastante tempo. Isso já foi testado, no vazamento gigante de petróleo que atingiu o Golfo do México, em 2010, e funcionou (aliás, não posso deixar de notificar que o total pago em multas e indenizações, no referido desastre ambiental, chegou a 54 bilhões de dólares; aqui, os valores são, até agora, pouco maiores que 1 bilhão de reais e encontram grande resistência em serem pagos, se é que serão pagos).
Mas temos exemplos de que nem tudo está perdido. Logo ali, em Biguaçu, a jogada empresarial não deu certo. O grande estaleiro da OGX, do falido mas nada pobre Eike Batista, não conseguiu obter as licenças ambientais para operar e foi embora. Houve debates, participação popular, espaço para todas as partes exporem suas ideias – mas, ao final, venceu a percepção de que a obra causaria impactos socioambientais profundos demais para serem aceitos, mesmo gerando muitos empregos. A comunidade perderia suas características tradicionais, ligadas ao mar. Parabéns pela resistência, pelo zelo ambiental e pela coragem, nobres e bravos vizinhos. Esse é o modelo de participação popular e análise crítica dos fatos que deveria ser seguido por todos, na medida em que precisamos deter o avanço implacável da injustiça ambiental em nosso país – a qual é fomentada pela ganância, pela alienação e pela sensação de impunidade. Somente comoção não basta, precisamos realmente pensar sobre o que aconteceu e vem acontecendo. Isto é, lucro e interesses particulares acima da segurança ambiental e dos interesses coletivos. Aprendamos com esta triste lição, para que jamais se repita - seja em Minas Gerais ou em Santa Catarina, em atividades de mineração ou na implantação de estaleiros. Esse assunto, essa nova pauta ambiental, deve ter o mesmo peso, em nossas vidas, que a qualificação dos médicos que atendem nossas famílias ou a solidez das edificações em que vivemos. Na verdade deveria, também, tomar o lugar que assuntos como a seleção de futebol, ou o quanto ganham seus jogadores, ocupam nos noticiários ou em nossas conversas cotidianas.
Por Fernando Name